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" Fui uma criança extremamente bagunceira, tinha um possível déficit de atenção, hiperatividade e consequentemente uma dificuldade absurda de aprender aquele conteúdo tecnicista, que era instrumentalizado por uma professora que nos guiava tal qual máquinas. Crianças enfileiradas para tentar compreender aquela Educação Bancária que Paulo Freire elucidou de forma brilhante. Eu não aguentava aquele sistema de ensino, não me adequava ao comportamento estereotipado..." 

 

Texto por Marília Alves -  Setembro de 2020

Projeto Mulheres Comunicativa Rio - Rio de Janeiro - BR.

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Lembro que aos sete anos tive o primeiro entendimento sobre as mulheres na sociedade. Na mais tenra idade, eu só queria brincar com coisas “de meninos”, afinal de contas, aquele tipo de atividade lúdica e enérgica abrilhantava mais os meus olhos do que ficar sentada com bonecas. É uma questão puramente de personalidade mesmo, mas que para mim era quase um impedimento visto que dessa forma eu não performaria a feminilidade esperada de uma criança do sexo feminino. A história da minha vida começa com a acentuada diferença no quesito comportamento, pois definitivamente precisava estar dentro de um padrão, e sair dele significava que eu deveria ter algum tipo de desvio. Obviamente isso me afetou e surgiu em mim uma inquietação que perdurou ao longo dos anos.

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Fui uma criança extremamente bagunceira, tinha um possível déficit de atenção, hiperatividade e consequentemente uma dificuldade absurda de aprender aquele conteúdo tecnicista, que era instrumentalizado por uma professora que nos guiava tal qual máquinas. Crianças enfileiradas para tentar compreender aquela Educação Bancária que Paulo Freire elucidou de forma brilhante. Eu não aguentava aquele sistema de ensino, não me adequava ao comportamento estereotipado das meninas, não encontrava motivação para estar naquele ambiente, até que me apaixonei perdidamente. Fiz essa pequena introdução porque encontrei o grande amor da minha vida nessa mesma idade mencionada anteriormente.

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Em 1995, a minha turma da escola fez uma aula experimental de judô e lembro como se fosse hoje! O sensei ensinou uma técnica de amortecimento chamado Zempo Kaiten Ukemi (forma de aprender a cair girando). Fiquei extremamente encantada só de estar no tatame, me sentia poderosa naquele momento e recordo com tanto carinho porque de alguma forma, sabia que seria para sempre. Decidi ainda muito criança o caminho que gostaria de seguir, um contexto frequentado de forma majoritária por homens, mas isso evidentemente nem passava pela minha cabeça, queria apenas sentir aprazimento de aprender algo do meu interesse, tinha sede do saber, não aquele da escola que para mim não fazia sentido. Queria descobrir, assimilar e me reconhecer dentro de algum contexto social. Judô abriu os meus caminhos e criou um sentimento de pertencimento a algo, pois apesar de muito criança, me sentia o “peixe fora d’agua.

 

Como toda boa histórica clássica de amor, o meu caminho não foi fácil. Minha mãe não compreendia essa minha devoção e ficava desconfortável com essa minha opção. Não completei nem um ano lutando, ela me tirou com a justificativa das minhas péssimas notas e por aquilo não ser esporte para meninas. Hoje entendo a minha mãe sob a ótica de diversos aspectos: criação, fatores externos, machismo convencionado e medo pela minha segurança. Lembro que sofri muito com essa decisão, que o fato de ser mulher, era a melhor justificativa para me tirar do que mais amava, e abominei meu gênero, desejei ser homem e poder ser livre!

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Os anos se passaram, e a vida sempre dá voltas. Ano de 2000, eu tinha 12 anos e um grande acontecimento abateu toda a minha família: meu pai perdeu o emprego e entrou em uma profunda depressão. Vi aquele homem, o chefe da família, o líder - qualidades que a sociedade denomina- definhando em vida, e em contrapartida, minha mãe assumiu as rédeas da casa: começou a trabalhar, aceitou qualquer emprego para sustentar três filhos, dormiu na fila das escolas públicas para ninguém deixar de estudar e se manteve firme no propósito de assegurar a casa. Naquele momento, reflexionei sobre as mulheres e tive muito orgulho da minha mãe que virou a nossa super heroína, o que é muito curioso e significativo, pois foi a partir dela que entrei no processo de empoderamento. Fui para uma escola na qual ofertava aulas gratuitas de judô e não pensei nem duas vezes em me inscrever. Estava voltando para o amor da minha vida e nunca mais saí dos tatames!
 

 Me formei naquele colégio, experiências lindas e marcantes para várias reencarnações. Acredito que situações acontecem e formam nossa personalidade para sempre. Natal de 2001, passamos com um tio em razão da nossa falta de recursos. Ele tinha dois filhos que ganharam muitos presentes, mas eu e meus irmãos ficamos só olhando mesmo, com vontade de ganhar qualquer coisa, poderia ser um par de meias, mas a sensação de não estar incluída no contexto em questão, marcou. Acredito que o cuidado cria laços, experiências formam a personalidade e exemplos na infância se eternizam, tanto positivamente como negativamente. Ao chegar em casa, minha mãe fez uma brincadeira conosco chamada: “Se eu pudesse e meu dinheiro desse.” Consistia em uma lista na qual colocaríamos todos os nossos desejos e ela prometeu que realizaria tudo que estivesse ao seu alcance, que poderia demorar, mas ela não desistiria. Meu pedido foi uma bola e um kimono azul trançado, ela não deve ter gostado nenhum pouco do meu pedido, mas naquele momento não retrucou, anotou na lista dos desejos e pronto! Dormimos feliz e ali fui admirando e me espelhando para ser uma mulher assim como ela: guerreira, presente, perseverante e sonhadora. Escreve isso com os olhos cheios de lágrimas, passa um filme na cabeça e agradeço ao Universo por ter vivido tudo isso, pois mais tarde, precisei muito ter garra e determinação para continuar o meu caminho.
 

Os anos se passaram, passei para Educação Física na UFRJ e comecei a trabalhar desde cedo, porque apesar de estar em uma universidade pública, precisava bancar meus gastos como estudante. Ano de 2008, já estava apta para me tornar faixa preta, mas o exame era e continua sendo caríssimo. Aprendi com a minha mãe que nosso contexto socioeconômico seria sempre de muita luta, mas que poderíamos mudar a realidade, ou pelo menos melhorar e assim fui encarando a vida, cheia de coragem e vontade de ser como essa mulher! Trabalhei naquele ano inteiro em lanchonete no carnaval, sendo cobaia de shampoo, fiscal de prova, cobrindo professor quando faltava e fui juntando cada centavo para realizar o meu sonho que julgo ter sido um dos dias mais felizes da minha vida.

Comecei a procurar trabalho como professora de judô para aumentar a renda e também porque queria me inserir dentro do mercado de trabalho, mesmo ainda sendo faixa marrom e tive um forte impacto quando constatei que o problema maior estava no primeiro embate da minha vida que sofri na infância: ser mulher.

A primeira entrevista foi em uma creche localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. A diretora lançou aquele olhar de desprezo para uma menina de dezenove anos, começando a vida e logicamente bastante insegura. De imediato, foi me dando uma resposta negativa alegando que -pasmem - as crianças precisavam de uma figura masculina para dar aula de lutas, pois eu poderia confundir suas cabeças. Todavia, havia urgência que alguém que pegasse aquele trabalho no qual consistia em uma turma de 15 crianças entre 2 a 6 anos, dentro de uma garagem, com uma lâmpada pendurada para iluminar e sem nenhuma saída de ar. O salário epopeico era de dez reais por aluno (essa frase contém ironia). Irrefutavelmente, aceitei e trabalhei lá por 6 anos da minha vida, concluindo o meu ciclo naquela escola com 54 crianças no judô, pagamento bem maior por aluno e uma bagagem de vida que nenhum dinheiro paga

Ao decorrer dessa trajetória, tive a alegria de me tornar faixa preta aos 20 anos, continuar cursando Educação Física e mergulhar dentro dessa empreitada dominada pelo sexo masculino. Em outra ocasião, migrei nessa época também para a Zona Sul do Rio, afinal de contas, quem trabalha dando aulas nunca tem apenas um emprego. Estabeleci raízes nas escolas e academias de Botafogo e Copacabana. Recordo muito bem como foi liderar um evento de judô infantil aberto ao público naquela região, que para mim, criada no coração da zona norte e habituada em outro contexto social e cultural, foi uma experiência única e impactante. O evento foi um sucesso e um senhor que estava assistindo veio conversar comigo, dizendo que tinha ficado muito satisfeito, mas que gostaria de conhecer o real professor daquela escola. Quando afirmei que estava como sensei responsável, ele ficou nitidamente surpreso, argumentou que seu filho era homem e precisava de um professor e relutou contra a vontade do próprio filho de ser meu aluno.  O menino ficou comigo por 5 anos e acabei saindo da escola depois desse período.

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Sempre discorro sobre as dificuldades que todos passamos nesse país de poucas oportunidades, que prioriza as classes dominantes e insistem no discurso meritocrático a fim de legitimar a má distribuição de renda. Contudo, ser mulher e buscar espaço dentro do mercado de trabalho nesse sistema patriarcal e tendo o machismo alavancando a misoginia, é matar um leão por dia. Os anos foram passando, me formei na faculdade, me pós graduei, fui outorgada ao segundo dan de judô, faixa preta de jiu jitsu, ganhei torneios internacionais como atleta master (de 30 até 34 anos), entrei para uma especialização na UERJ em Lutas ficando em primeiro lugar e mesmo assim continuo sentindo na pele a discrepância de credibilidade, oportunidades e principalmente valorização do meu trabalho pelos homens.

 

Em 2013, participei do longo e árduo processo seletivo para dar aulas de Judô na empresa SESC. Eram mais de 100 candidatos, apenas cinco vagas e eu fui a única mulher do Rio de Janeiro a conseguir assumir uma Unidade. Fato que me deixa honrada e ao mesmo tempo, motivada a continuar no compromisso de pleitear o nosso espaço.

Ano de 2020, olho para trás e me sinto uma mulher de muita sorte. Aos 7 anos eu me apaixonei por essa luta por acaso ou destino. Me sinto felizarda por ter tido o exemplo de pessoa que gostaria de ser: minha mãe! Por ela, dedico esse texto e deixo aqui a minha convicção que devemos começar as mudanças com as crianças, espalhando sororidade, dando exemplos vivos de empatia, empoderando meninas, naturalizando as diferenças e abordando a equidade de gênero. O mundo é nosso! Vamos à luta!

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